Imóveis: a indústria dos distratos e o risco de retrocesso da segurança jurídica
Há quem diga que o mercado imobiliário é uma espécie de "termômetro" da economia de um país. De fato, o setor é uma das locomotivas do desenvolvimento em termos de geração de empregos (diretos e indiretos) e demanda em escala de produtos e serviços.
A parte ruim dessa comparação é quando esse "termômetro" indica que a "febre está alta" e que "o estado do paciente é grave". Se nada for feito - e rápido! - o paciente poderá ir a óbito.
Trocadilhos e metáforas à parte, mas, de fato, a "saúde" do mercado imobiliário brasileiro está se deteriorando há, pelo menos, quatro anos.
A bolha imobiliária brasileira é de liquidez
Como já dissemos em outras oportunidades, a bolha imobiliária no Brasil é diferente da bolha americana, aquela que apavorou o mundo e deu origem à crise financeira de 2008.
Não é preciso ser nenhum especialista em mercado imobiliário para perceber que o preço dos imóveis subiu muito além do 'razoável', ainda mais num país de endividados e que vinha saindo aos poucos de um longo período de estagnação econômica e insegurança jurídica.
A constante alta de preços era insustentável (ainda que muitos tentassem negar o óbvio!). Era evidente que um dia essa conta iria chegar. E chegou!
Resultado:
Estoques elevados + falta de crédito + recessão + desemprego + inadimplência + enxurrada de distratos = bolha de liquidez
O desanimador cenário atual é fruto de uma combinação, no mínimo, perigosa e irresponsável, sendo que o consumidor em geral tem, SIM, uma grande parcela de culpa.
Claro que nominar culpados não irá resolver o problema em curto prazo, mas indica a necessidade de revermos certos conceitos e atitudes, bem como de buscarmos um entendimento mais amplo sobre aquilo que é positivo para toda a sociedade e não apenas para interesses pessoais ou de um determinado grupo/setor em certos momentos, como a questão da Habitação.
Não resta dúvida que a situação de hoje é resultado da ganância de muitos investidores, incorporadores, construtores, imobiliárias, corretores, especuladores - além de uma quantidade sem fim de 'interessados' em fazer com que o boom imobiliário brasileiro durasse para sempre - associada à euforia e a ingenuidade de milhões de consumidores que, após anos de sacrifícios, pensaram estar diante da chance de realizar o sonho da casa própria, ainda que sem dar muita atenção a um "pequeno" detalhe: o preço.
O fato é que é inadmissível tratar a compra de um imóvel ou de qualquer outro bem de maior valor - principalmente quando isso implica em assumir financiamentos intermináveis e a juros absurdos - como se estivéssemos comprando um refrigerante. Depois, não adianta vir com 'mimimi':
Se não tem como pagar, melhor devolver antes que seja tarde, mas sem querer passar a conta para quem empreendeu.
Alienação Fiduciária e a Era das Regras Claras
Algo muito pouco comentado e que - assim como o acesso ao crédito - foi fundamental para a recuperação do mercado imobiliário observada entre os anos 2000 e 2010 foi o expressivo aumento da segurança jurídica nas negociações de compra e venda de imóveis representado pelos contratos de alienação fiduciária.
Vejamos a definição de Fidúcia, segundo o Dicionário Informal:
" ... é uma palavra que vem do latim, confidere, que significa confiança, segurança, lealdade, em que se credita boa-fé, ou seja, confiança que o fiduciante deposita no fiduciário no cumprimento da obrigação pactuada."
Entre os anos 1980 e 2000 milhões de pessoas compravam imóveis dando uma pequena entrada e, em seguida, deixavam de pagar os financiamentos. Boa parte delas alegava dificuldades devido as inúmeras crises financeiras e períodos de inflação descontrolada que resultavam em juros impagáveis. Outra - bastante expressiva! - por mera liberalidade (e também por má fé!), amparada no entendimento generalizado dos tribunais superiores que dificilmente decidiam pela devolução do bem aos proprietários/construtores/incorporadores, baseados no argumento do direito à moradia previsto na Constituição.
Conclusão: insegurança jurídica e comercial e anos de estagnação na indústria, principalmente no setor da Construção Civil.
Diante disso, os principais players do mercado imobiliário brasileiro, obviamente, passaram a "preferir" lucrar no mercado financeiro a construir. Com isso, o Brasil viveu anos de estoques baixíssimos e de escassez de lançamentos de novos empreendimentos.
Em meados do ano 2000, após um longo período de incertezas, os contratos de alienação fiduciária, enfim, passaram a ter o apoio das cortes, o que significou um divisor de águas em termos de regulamentação de direitos e deveres nas negociações de compra e venda de bens. Com isso, os empresários e investidores de vários setores voltaram a ter confiança de que as regras e condições de venda seriam respeitadas e, então, o Brasil viveu um dos períodos mais prósperos de sua história.
Hoje, porém, este imenso avanço jurídico-comercial está ameaçado. Ocorre que há um movimento contrário ganhando cada vez mais espaço na "Terra do Mimimi": os distratos.
A indústria dos distratos: retrocesso a vista?
Com o agravamento da crise o número de distratos mais que dobrou nos últimos meses. A chamada 'taxa de devolução' já supera os 40% em algumas cidades. O cenário é crítico se considerarmos que todos os dias milhares de negócios estão sendo desfeitos e, com isso, uma infinidade de imóveis está retornando aos estoques das principais construtoras e incorporadoras do país que, diga-se de passagem, já estão abarrotados! - indicando que estamos muito distantes de uma solução.
Vitimismo + Arrependimento + Falta de Planejamento Financeiro + Mimimi + Xororo = Prejuízo!
Uma coisa é certa: seja de forma 'amigável' ou pela via judicial, negócios desfeitos significam prejuízo para todas as partes, pois afetam a confiança e inibem o empreendedorismo.
É importante destacar que neste texto não estamos defendendo distorções e excessos de nenhum lado, e sim, a necessidade de uma ampla reflexão em relação ao comportamento do consumidor e da indústria em geral.
O exponencial aumento no número de distratos deve ser visto com muita preocupação pelo mercado como um todo, pois - conforme forem os entendimentos das cortes no tocante aos ressarcimentos, tendo em vista as inevitáveis pressões mercadológicas, políticas e sociais - a insegurança jurídica voltará a reinar no país e - como alertamos no início deste texto - inevitavelmente o paciente Brasil irá a óbito.
R.I.P.
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